segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Luís Joaquim de Oliveira, “Cirurgião da Bicha” e comendador


O Dicionário de Camilo Castelo Branco de Alexandre Cabral traz sobre Luís Joaquim de Oliveira um verbete donde recolhemos o seguinte:
Luís Joaquim de Oliveira (1803-1882) era natural de Gondifelos (do lugar de Romai) e aprendeu o modo de tratar a ténia com o cirurgião de Rates: ”os efeitos da medicação eram radicais”.
Mais adiante conta-se que Luís Joaquim de Oliveira tratou a rainha D. Maria II, que lhe concedeu o grau de cavaleiro da Ordem de Cristo de acordo com os termos da carta régia de 25 de Julho de 1844.

O investigador Maximiano Lemos[1] estudou exaustivamente o caso do “cirurgião da bicha”, “que pôs em alvoroço polémico as instituições médicas da época”.
Camilo consultou-o em 1856, acompanhado de três amigos, e redigiu um relato sarcástico da consulta que, depois de ter saído em vários jornais, inseriu em Duas Horas de Leitura. Fala ainda deste “doutor” em No Bom Jesus do Monte e Vinte Horas de Liteira.

A cura da Rainha Dona Maria II e a sua generosa gratidão

No livro de Baptista de Lima Póvoa de Varzim Monografia e Materiais para a sua História, vem cópia dum trabalho de F. Barbosa sobre o Cirurgião da Bicha que contém informação que não conhecíamos doutra fonte. Conta assim a cura da rainha:
D. Maria II também teve de recorrer aos seus serviços para o mesmo efeito. Foi isto em 1844. O “Luís da Bicha” dirigiu-se ao Porto, tomou a barca para a capital e apresentou-se no paço. Como a rainha receasse ingerir a bebida, Luís de Oliveira foi a um colégio de meninas, apartou as que apresentavam os “sintomas físicos” do platelminta e deu-lhes o remédio a tomar. A experiência com as meninas-cobaias não pôde ser mais cabal.Liberta do parasita, D. Maria perguntou-lhe que pretendia em paga do valioso préstimo. Nada quis, mas a rainha levou a sua liberalidade ao ponto de lhe pôr uma carruagem à disposição para a jornada até ao Porto, com uma escolta para o livrar de apertos agónicos no pinhal de Azambuja e noutros sítios, e fê-lo cavaleiro da Ordem de Cristo “em atenção aos serviços que tem prestado à humanidade na aplicação de certo remédio de que possui o segredo, com o qual cura pronta e eficazmente uma das grandes moléstias que afligem a espécie humana”.
Este relato da cura e da recompensa que lhe deu a rainha segue o de Maximiano Lemos. De facto, esta ainda o presenteou com um prazo em Negreiros, “que ele vendeu por 400 escudos”. Um prazo, sabemo-lo, corresponde a uma casa de lavoura com as respectivas propriedades rústicas.

Um remédio de eficácia reconhecida

Maximiano Lemos dedica página e meia do seu livro a recolher testemunhos autorizados sobre a eficácia do remédio de Luís Joaquim de Oliveira. No Diário do Governo, até Mouzinho da Silveira se pronunciou favoravelmente a respeito dele. Mas são citadas a seguir a Revista Médica de Lisboa e a Gazeta Médica do Porto. Transcrevem-se estes testemunhos: 
O ilustre professor da Escola-Médico-Cirúrgica do Porto manifestava o desejo de que se procedesse a um inquérito relativo à eficácia do específico e à perícia do Sr. Oliveira e reconhecida uma e outra o Governo comprasse o segredo e o legasse ao público em benefício da humanidade. “O muito desinteresse que se não pode negar ao Sr. Oliveira e de que temos muitas provas” levava-o a acreditar que seria pequeno o sacrifício pecuniário.
Considerava-se que à Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa competia tomar a iniciativa desta averiguação, para a levar ao conhecimento da rainha[2].
Dezasseis anos depois, ainda o medicamento conservava a mesma reputação, senão maior. O professor de Farmácia Félix da Fonseca Moura ocupava-se em 1860 da bebida tenífuga ou remédio contra a ténia do Sr. Luís de Oliveira, cirurgião em Gondifelos, próximo de Famalicão. Dizia que entre os diferentes remédios propostos contra o verme solitário, “a bebida altamente eficaz, por seu valente poder e realidade de acção” era incontestavelmente a que preparava aquele senhor.


Cinquenta por cento de “probabilidades” ou o indigno sarcasmo de Camilo

Ouça-se agora um fragmento da narrativa que Camilo incluiu em Duas Horas de Leitura, quando Luís Joaquim de Oliveira já residia em Balasar; nele o Doutor é o curandeiro da bicha e Eu é naturalmente o escritor: 
O DOUTOR – Então que sente?EU – Dispneias frequentes, nevrose no aparelho respiratório, um borborigmo escumoso a partir do esófago, pulsações lancinantes no estômago, beliscadelas ardentes na pele e de noite estremecimentos súbitos que me despertam…O DOUTOR (interrompendo-me com um sorriso de inteligência) – Isso não são sintomas físicos; sem sintomas físicos não temos probalidades; a solitária tem os seus sintomas.EU (mordendo o beiços o mais sintomática e fisicamente que podia para disfarçar uma gargalhada física.) – Além disso, sinto uma profunda melancolia, um aborrecimento de tudo, um desleixo por tudo, inactividade para tudo…O DOUTOR – As probalidades são cinquenta por cento. Ora diga-me: come bem?EU – Pouco, e sem apetite.O DOUTOR – Quando se tem a solitária, come-se bem, ela ajuda a digestão. Ora como o senhor não tem sintomas físicos, as probalidades são cinquenta por cento. Deixe lá ver a língua… Está bom… É preciso fazer certa experiência para termos sintomas físicos. Isto há-de ser mais devagar.Disse.Ergui-me com os cinquenta por cento e vi que os meus companheiros fungavam a um canto, uma risada, encarando-me com ar de compaixão.
 Depois de se ler o que Camilo[3] escreveu, conclui-se que o autor tem bem menos graça do que supunha. Ele pretendia era demolir o curandeiro, que já recebera elogios no Diário do Governo, mais que denunciá-lo como charlatão, para o que não teve forças. A caricatura que dele faz é dum sarcasmo cruel e bastante gratuito, indigno. E a crónica foi publicada em jornais e livros…
Dores de cotovelo, pois o doutor era, por mérito próprio, desde há anos cavaleiro da Ordem de Cristo e devia gozar duma posição económica folgada![4]


Imagens: em cima fotografia de Luís Joaquim de Oliveira e em baixo retrato do mesmo com as insígnias da comenda de Cristo.



[1] No Boletim Municipal Póvoa de Varzim (vol. II, nº 1, 1959, páginas 50-54), há um artigo que é certamente um extracto do livro de Maximiano Lemos Camilo e os Médicos, mas não fala do Cirurgião da Bicha.
[2] Gazeta Médica do Porto, n.º 61 de 10 de Junho de 1844.
[3] Camilo tinha então 31 anos e não atingira ainda, nem de longe, a notoriedade que havia de conhecer mais tarde, sobretudo a partir da publicação do Amor de Perdição.
Na forma popular “probalidades” (por probabilidades) ocorre o mesmo fenómeno fonético que encontramos na palavra caridoso, que em termos de purismo etimológico deveria ser “caridadoso”.
[4] Conta-se que Luís Joaquim de Oliveira, que também era armador, terá passado esta actividade para a família que hoje na freguesia possui uma funerária, para que se não pensasse que ele matava as pessoas (que não conseguia curar, naturalmente) para lhes fazer o enterro…

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